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Prescrição e 10 medidas contra a corrupção

Guilherme Ziliani Carnelós
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 18 de outubro de 2016.

Não há dúvidas de que a prescrição representa preocupante entrave da Justiça penal. A preocupação é de todos, pois sem julgamento definitivo não se alcança efetividade do esforço jurídico eventualmente despendido pelo Poder Judiciário, o que fomenta a sensação de favorecimento à impunidade, com o conseguinte estímulo à prática criminosa.

Justamente a partir desse conceito generalista e incompleto que as messiânicas dez medidas contra a corrupção lutam pela reforma do sistema penal para impedir, de todo modo, que fatos prescrevam. Com isso, dá-se ao Estado um direito quase que vitalício de punir, ao passo que o indivíduo – culpado ou inocente – deve aguardar pronunciamento definitivo sobre acusação que pode (porque não?) ser injusta.

Para tanto, contam os autores da medida com uma boa dose de confusão de conceitos jurídicos (desconhecidos por quase todos os subscritores do apoio ao pacote das dez medidas) e, com isso, subvertem completamente a finalidade do direito penal e também do processual penal.

Pois bem. O direito penal estabelece normas que estipulam comportamentos da população em geral que, de tão graves, são considerados inadmissíveis a ponto de serem punidos com penas que podem lhe custar a liberdade, o bem mais caro depois da vida.

Assim, quando o legislador penal diz que é proibido matar ou que não se pode corromper ou extorquir, firma um comportamento proibido, estabelecendo um padrão que há de ser respeitado por todos, independentemente da origem, da profissão ou do cargo que ocupe.

E a prescrição, incluída dentre as normas de direito penal – as mesmas que dizem o que é proibido fazer – fixa um limite para a atuação do Estado, que tem um prazo para processar e punir os suspeitos de um crime.

E porque? Porque uma das grandes conquistas da Democracia no mundo – e o Brasil lutou bravamente para ser inserido no rol dos países efetivamente livres – foi a segurança jurídica. Ninguém pode passar a vida, ou boa parte dela à espera de um julgamento.

Tanto é assim que, incorporando ao texto constitucional o mandamento da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Brasil, por meio da emenda constitucional 45/2004, elevou a celeridade processual à categoria de direito individual.

Ora, se a celeridade processual é constitucionalmente reconhecida como um direito do acusado, ela automática e inexoravelmente gera ao Estado a obrigação de garantir a conclusão do processo no menor tempo possível.

E esse é ponto de confusão conceitual da proposta de reforma do sistema prescricional: os proponentes tiram do Estado a obrigação de celeridade e impõem ao acusado as nefastas consequências da demora da Justiça.

Mas alguns questionarão o fato de a legislação processual oferecer aos acusados muitos recursos. Falácia pura.

É preciso acabar com a ideia levianamente divulgada de que recursos se prestam à impunidade. Basta olhar a expressiva quantidade de recursos de defesa providos e se notará que é de bom alvitre (para dizer o mínimo) aguardar a conclusão do processo antes se mandar pessoas ao cárcere.

E o número de recursos nada tem de exagerado ou de incompatível com as demais democracias.

A real causa da demora nos julgamentos dos processos é um Poder Judiciário fora do prumo que precisa, e muito, se adequar à realidade e livrar-se da morosidade.

E os Tribunais brasileiros estão abarrotados de recursos não criminais que se arrastam por anos, muitos deles promovidos por entidades estatais e paraestatais, cujos procuradores – independentemente do mérito – são obrigados, sim, obrigados a recorrer.

Levantamento feito em parceria pela Fundação Getúlio Vargas à época em que se discutia a Proposta de Emenda Constitucional nº 15/2011 mostrou que os recursos criminais representam pífios 8% do total julgado pelo Supremo Tribunal Federal. Boa parte do restante é preenchida com recursos do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e da Caixa Econômica Federal.

Na época, a PEC não passou, mas o alento durou muito pouco. Em triste episódio para o direito de defesa, o Supremo Tribunal Federal, fez questão que o aniversário de 28 anos da Carta Cidadã fosse manchado com a indelével relativização do significado constitucional de trânsito em julgado.

De todo modo, ao contrário do que se alardeia, a demora processual que induz o esgarçado discurso de impunidade não tem causa na quantidade de recursos criminais. Tem causa na falta de aparelhamento do Estado e numa cegueira administrativa/legislativa como a que se vê da obrigatoriedade de que acima falei.

O excesso de recursos promovidos pelo próprio Estado provoca desequilíbrio da máquina Judiciária que fica impedida de concentrar energia em questões de alguma relevância; causa também prejuízo ao erário, pois é a população quem paga a conta dos salários de procuradores obrigados a recorrer de tudo e de magistrados (e todo o restante do apoio administrativo) para que esses recursos tramitem. Houvesse possibilidade jurídica de estímulo ao acordo extrajudicial ou de aceitação de uma decisão de primeiro grau e sobraria força de trabalho (e dinheiro) para que questões mais sensíveis, dentre elas as penais, tivessem julgamento mais célere, sem necessidade de reforma do direito processual penal.

Apelando para o discurso fácil e superficial do combate à impunidade, os proponentes das 10 medidas partem da lógica tortuosa de que um problema se resolve por seu efeito e não por sua causa. A proposta é quase que o estabelecimento de uma “fila de precatórios” do Processo Penal, na medida em que o Estado não mais terá preocupação alguma com prazo, pois a interposição de recursos aos tribunais superiores é causa “impeditiva da prescrição”. É bom registrar que serão causas impeditivas inclusive os recursos da acusação, portanto, quando o réu tiver provimento favorável no Tribunal de Apelação.

Além disso, o curso da prescrição será interrompido “por qualquer decisão monocrática ou acórdão que julgar recurso interposto pela parte”. É o fim do direito de defesa…

Isso é justo? Evidente que não! Não é bom nem para o Estado nem para o acusado.

Imagine-se um rapaz de 22 anos condenado à pena de 5 anos pela prática de roubo. Após 20 anos esse rapaz já se tornou um homem que pode tanto ter se sentido estimulado à reincidência em razão da inércia do Estado, quanto estar profundamente arrependido, ter refeito sua vida, conseguido emprego, constituído família etc.

É injusto, pois, que esse homem (já aos 42 anos de idade) seja submetido à execução de uma pena que, a essa altura, serve somente à vingança estatal. Essa finalidade da pena certamente foi vista no Código de Hamurabi em aproximadamente 1772 a.C. e nos sistemas antidemocráticos dos quais tanto lutamos para nos livrar. Mas nas 10 medidas se propõe um retrocesso sem a menor preocupação com o aspecto humano da pena: a ressocialização do criminoso.

E se esse mesmo jovem de 22 anos cumprir antecipadamente a pena e, depois de 20 anos, o Superior Tribunal de Justiça vier a reconhecer que a condenação foi ilegal? Caberá a esse coitado pedir uma indenização ao Estado que, se deferida, lhe empurrará para a real fila dos precatórios.

Pior. Tendo esse mesmo sujeito sido condenado em primeiro grau, mas absolvido pelo Tribunal de Apelação, a proposta permite que o Supremo Tribunal Federal depois de 25, 30, ou 35 anos venha a considerar que a absolvição foi ilegal, mandando o réu para a cadeia. O contrassenso é evidente.

Esses exemplos ilustram um aspecto que os criadores das 10 medidas contra a corrupção não mencionam. A Justiça Penal não é das estrelas da Operação Lava-Jato e de casos midiáticos. É a Justiça dos pobres, do dia-a-dia, de problemas mais simples que demandam respostas rápidas, tal como a do hipotético rapaz de 22 anos.

Livrar o Poder Judiciário dos prazos impostos pelo direito individual à celeridade processual serve muito aos palanques de messianismo, mas escondem um lado desumano que só se viu nas tiranias.

Tudo o que o Brasil menos precisa para combater a impunidade é dar carta branca ao Estado para se alongar indefinidamente. Afinal, como já afirmou a eminente Ministra Presidente do Supremo Tribunal Federal, “a Justiça que tarda falha. E falha exatamente porque tarda” (STF, RE 878.104/PE, DJe 7.4.2015).

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