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Muito além do combate à corrupção

Alberto Zacharias Toron, associado do IDDD, comenta o projeto de lei em análise na Câmara dos Deputados, que trata das medidas de combate à corrupção propostas pelo Ministério Público Federal

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Alberto Zacharias Toron. Foto: Jf. Diorio/Estadão

Desde o mês de julho, encontra-se em análise de comissão especial da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4.850/2016, originado a partir do pacote de ações elaborado pelo Ministério Público Federal (MPF), conhecido como “10 Medidas de Combate à Corrupção”. Ao notar que algumas dessas propostas buscam cercear o direito de defesa de todo e qualquer acusado em processo criminal, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) passou a trabalhar para que o projeto a ser aprovado não acarrete em violações a direitos e garantias fundamentais.

No último dia 17 de outubro, o advogado criminalista associado do IDDD Alberto Zacharias Toron foi convidado a participar de uma audiência pública na comissão, tratando especificamente de questões relacionadas ao uso do Habeas Corpus que, na proposta do MPF, pode ter seu alcance reduzido.

Em entrevista, Toron comenta sobre sua participação na audiência e analisa pontos alarmantes do projeto, que podem acarretar em retrocessos democráticos. Confira a seguir:

Quais os pontos mais críticos sob o ponto de vista do direito de defesa?
Alberto Zacharias Toron: Do ponto de vista do Direito de Defesa o que me parece ser mais preocupante é a restrição ao Habeas Corpus, que, no projeto, perde a sua dimensão preventiva para ser utilizado apenas na hipótese de prisão. É uma redução muito drástica ao seu emprego, que compromete totalmente o caráter preventivo da ordem do HC, retrocedendo ao que o instituto foi no Estado Novo. Não me parece que, em plena democracia, com um incremento das punições de forma acentuada, se possa pensar na redução do cabimento do habeas. Quando fui ouvido pela comissão especial da Câmara dos Deputados que estuda o pacote de medidas, o relator anunciou publicamente que não pretende mais modificar essa garantia. Considero uma vitória muito importante de todos os setores empenhados na defesa do direito de defesa.
Há, ainda, no projeto do MPF uma pretensão de praticamente se acabar com a ideia de nulidade no processo penal que, digamos assim, na sua essência, passará a ser uma espécie de vale tudo. De acordo com o projeto, até mesmo uma prova ilícita pode ser aproveitada, desde que tenha sido produzida com boa-fé. Isso me parece uma excrescência que, no entanto, tem ganhado a adesão de pessoas respeitáveis no meio jurídico. Porém, acredito que a Comissão irá reexaminar a matéria e não deva admitir as provas ilícitas, tal como preceitua a Constituição Federal.
O que me assusta é perceber como a reforma que pretendem introduzir tem uma predileção pelo aumento das penas. Nós vamos ter caso de corrupção com pena de até 25 anos, o que é uma demasia, já que o homicídio não tem uma pena tão alta. Há ainda um apelo pela ampliação do rol de crimes hediondos, como se o aumento das penas e a rotulação de certas condutas pudessem debelar esse tipo de criminalidade. Nem debela e nem diminui. Teremos a mesma ilusão de quando foi promulgada a Lei dos Crimes Hediondos em 1990, pois o número de estupros e de extorsões mediante sequestro não diminuiu. Me parece uma postura muito ingênua acreditar que o aumento da pena por si só acarretará na diminuição desse tipo de criminalidade.

Além da medida que restringe o alcance do Habeas Corpus, quais outros pontos do projeto se equiparam ao processo penal do Estado Novo?
AZT: Além do cerceamento ao Habeas Corpus, também existe a questão da ampliação do espectro de incidência da prisão preventiva, que será quase obrigatória se aprovada a proposta do MPF. Esses dois pontos aproximam muito o nosso processo penal – em plena democracia – do regime fascista. O mero suspeito vai ser obrigado a devolver o que supostamente recebeu como produto de um crime que é apenas investigado. Enfim, uma inversão absoluta das coisas.

Dentro da lógica do sistema de justiça criminal, qual o impacto que essas medidas podem ter para os suspeitos e condenados a outros tipos de crimes?
AZT: A pretexto de combater a corrupção, o pacote reduz direitos e garantias, atingindo fortemente a criminalidade comum. Na verdade, essas medidas alcançam todos os crimes do Código Penal e, portanto, se aprovadas, todo o processo penal mudará. Isso deve ser objeto de alerta, pois não é só a questão da corrupção que está em jogo.

Como o senhor avalia a ausência no projeto de mecanismos que garantam a segurança dos cidadãos contra abusos cometidos por agentes estatais?
AZT: Como disse o Ministro Gilmar Mendes, estão se aproveitando do combate à corrupção para permitir que o processo penal seja uma espécie de vale tudo, para que se possa exercer o controle dos cidadãos com mais eficácia, sem a contrapartida do controle de quem tem o poder. Por isso, é que eles [Ministério Público] são contra a Lei de Abuso de Autoridade – aliás, isso foi muito bem colocado pelo presidente do IDDD, Fábio Tofic. Há no projeto uma esperteza midiática de se aproveitar do clamor popular para se ampliar o poder do Ministério Público, da polícia e do Estado, sem esses serem responsabilizados pela prática de abusos. Porém, em boa hora começam a se erguer vozes do próprio Judiciário – como o Ministro Gilmar Mendes – para mostrar que as medidas não são exatamente como preconiza o Ministério Público Federal.

Como uma lei nesse sentido pode atender aos anseios populares de combate à corrupção, sem violar direitos e garantias fundamentais?
AZT: Em primeiro lugar, acho o apelo popular do projeto extremamente demagógico, pois afasta a discussão mais séria e aprofundada que deveria ser feita no âmbito do legislativo. O clamor popular – já o disse muita gente antes de mim – levou Jesus Cristo à cruz e Hitler ao poder. Sem uma discussão serena e afinada com as garantias constitucionais para reformar o Código de Processo Penal, as medidas apenas irão fortalecer o poder do Estado em detrimento das garantias outorgadas ao cidadão. Em outras palavras, nós vamos ter um Estado forte, que não necessariamente vai combater com maior eficácia a criminalidade, mas com certeza vai desguarnecer o cidadão na luta contra as arbitrariedades cometidas por agentes estatais. Costumo sempre dizer, lembrando o professor Frederico Stella, da Universidade de Milão, que a ideia de segurança para o homem contemporâneo tem uma dupla dimensão: uma é contra a criminalidade e a outra se dá contra os desmandos dos agentes do Estado. Polícia, Ministério Público e juízes não podem caminhar sem responsabilização. Por isso, acredito que está mais do que na hora de resgatarmos a discussão do projeto de reforma do Código de Processo Penal, para não termos apenas remendos legislativos e sim uma nova filosofia orientando a utilização da máquina estatal punitiva.
Acredito também que adotar medidas de natureza administrativa, a serem exercidas antes da ocorrência dos fatos, seja muito mais eficaz do que a tentativa de ampliação do encarceramento. Hoje já prendemos muito e já temos um sistema penitenciário superlotado. Ou seja, aonde vão arrumar dinheiro para construir mais cadeias? Ou será que os novos presos vão ser tratados como uma espécie de dejeto humano, assim como acontece atualmente? O que fazer com a crise eterna do nosso sistema penitenciário? Esse é outro ponto não explicado pelas pessoas que se empolgam com essa reforma que exacerba a punição.

Histórico
No mês de agosto, o conselheiro do IDDD Augusto de Arruda Botelho também participou de uma audiência pública promovida pela comissão para debater o projeto de lei. Na ocasião, Augusto destacou que “as reformulações, em variados artigos do Código de Processo Penal, violam de forma grave os mais básicos direitos de defesa. É preciso deixar bem claro que estamos tratando aqui de uma reforma ampla, radical e perigosíssima da lei, sob o manto de se estar combatendo a corrupção”.

Saiba mais
Quinzenalmente, o IDDD tem publicado no portal JOTA artigos assinados por seus diretores e associados para abordar pontos críticos das 10 medidas de combate à corrupção do MPF em relação ao direito de defesa. Clique aqui para conferir os textos já publicados e acompanhe os próximos na nossa seção de Artigos.

Confira também o artigo a “11ª Medida”, do Presidente do Instituto Fábio Tofic Simantob publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 02/09/2016.

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