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Por que o encarceramento cresce tanto no Brasil segundo Catherine Heard, diretora do maior banco de dados sobre sistemas prisionais do mundo

Informações sobre sistemas prisionais são, por definição, difíceis de acessar. Catherine Heard trabalha para romper essa blindagem e trazer à tona dados sobre o estado do encarceramento, não só em seu país, o Reino Unido, como no mundo. Ela integra o ICPR (Institute for Criminal Policy Research), da Birkbeck – Universidade de Londres e dirige o World Prison Research Programme, programa responsável pela publicação do World Prison Brief – um dos maiores bancos de dados comparativos sobre sistemas prisionais, com informações de 220 países.

Atualmente, Heard se dedica a tentar entender o que move o aumento nos índices de encarceramento em dez países, entre eles o Brasil. Segundo dados de junho de 2016 do Ministério da Justiça, o país possui a terceira maior população prisional do mundo, de 722 mil pessoas, e sua taxa de aprisionamento (o número de pessoas presas por cada grupo de 100 mil habitantes) cresceu mais de 130% desde 2001, contrariando a tendência de outros países com grandes contingentes atrás das grades, como é o caso de Estados Unidos, China e Rússia.

Para Heard, que já viveu no Brasil e conhece de perto as mazelas dos nossos presídios, fatores como a política de drogas e o uso abusivo da prisão provisória ajudam a explicar o fenômeno, assim como a cultura e a falta de conhecimento sobre as consequências e os baixos resultados que a prisão tem sobre a violência.

“É um problema cultural encarar a prisão como necessária e única resposta para qualquer tipo de crime. Há uma falta de imaginação e uma incompreensão sobre o baixo resultado que a prisão pode ter”, afirmou em entrevista ao IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). Como parte de sua pesquisa, ela esteve em São Paulo para visitar unidades prisionais, conversar com autoridades e representantes de organizações da sociedade civil.

Para ela, que é reconhecida mundialmente como uma autoridade no tema, o encarceramento massivo é um entrave ao desenvolvimento dos países e a retórica punitivista, em alta em períodos eleitorais como o que se vive no Brasil, esconde as nefastas consequências que a prisão tem na sociedade.

Leia a entrevista completa:

IDDD – Sobre o que é a pesquisa que você desenvolve atualmente?

Catherine Heard – O World Prison Brief é um programa global de pesquisa. Uma das nossas principais atividades é compilar e publicar um banco de dados prisional mundial, que existe desde 2000. Temos, portanto, excelentes dados comparativos sobre o sistema de quase todos os países em todo o mundo, o que nos permite olhar para o crescimento na taxa de presos, além das mudanças ao longo do tempo e em diferentes regiões. O que estamos tentando fazer no momento é entender o que tem provocado o aumento nas taxas de encarceramento. Estamos investigando a razão pela qual o uso da prisão aumentou tanto nos últimos 20 anos em alguns países. E, para fazer isso, selecionamos 10 países, cobrindo todos os cinco continentes do mundo. Eles foram escolhidos por nos dizerem coisas importantes e representativas e, também, porque poderiam mostrar lições transferíveis a outros países.

IDDD – Por que o Brasil integra essa lista?

CH – O Brasil é um país muito importante para mim porque eu morei aqui entre 2001 e 2004. Durante esse período as coisas estavam mudando muito na sociedade brasileira. O uso de drogas subiu muito e o superencarceramento estava começando a crescer – e agora decola exponencialmente. Naqueles anos eu pude entender um pouco sobre o problema da falta de confiança na polícia, sobre seus processos históricos e sobre a discriminação racial. Havia uma grande diferença no modo como as pessoas pobres e marginalizadas estavam sendo tratadas pelo sistema de justiça criminal, ao mesmo tempo em que havia impunidade entre os mais poderosos da sociedade, que eram imunes ao sistema de Justiça.

Escolhi o Brasil por este motivo, mas também por conta da política de drogas no país. Aqui há uma questão em torno do uso e do tráfico de drogas, o que faz com que muitos políticos entendam a justiça criminal como a única maneira de resolver esses problemas.  O exemplo dos Estados Unidos mostra o que acontece quando delegamos a solução para a justiça criminal e não adotamos uma abordagem de saúde pública, de redução de danos. Tendo o Brasil como um dos dez países pesquisados poderíamos mostrar formas diferentes de abordar o problema e aprender sobre o que está acontecendo aqui.

Por fim, também escolhi o Brasil pela forte organização da sociedade civil, com muitas entidades maravilhosas que trabalham duro com o desenvolvimento e a defesa dos direitos humanos. O IDDD é uma dessas organizações.

IDDD – Você mencionou algumas particularidades neste grupo dos 10 países. O Brasil segue tendências identificadas em outros países?

CH – Além da questão das drogas, há um elemento em comum com outros países do mundo, particularmente no hemisfério sul: um exponencial aumento no encarceramento feminino. A taxa de crescimento no número de mulheres presas no Brasil nos últimos quinze anos é assustadora. E esse também é o caso em muitos outros países com políticas semelhantes. Os dois problemas estão muito ligados.

No Brasil, quase 70% das mulheres encarceradas estão lá por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Algo muito comum também em outros países é que elas não estão ali por crimes graves. Em sua maioria, respondem por delitos pequenos, são presas por levar drogas para outras pessoas ou por terem sido forçadas por alguma circunstância.

Outro problema visto nos demais países é o número de presos provisórios. Não há necessidade prender tantas pessoas que ainda não foram condenadas. Há uma cultura contra a liberdade provisória e há, também, um problema de infraestrutura. O acesso a medidas alternativas à prisão provisória é muito pequeno e há, ainda, uma decisão política de tratar pessoas acusadas de um crime como se fossem responsáveis por crimes hediondos.

IDDD – Além da política de drogas, o que tem impulsionado a quais são os principais fatores que levam à prisão em países onde o número de população carcerária está crescendo?

CH – Eu posso mencionar dois fatores que são diferentes lados do mesmo espectro. Um deles é o uso excessivo da prisão para infrações menos graves. Em muitos países, o roubo é algo que automaticamente gera pena de prisão, mesmo que a quantidade roubada seja pequena ou que tenha ocorrido em função de uma necessidade básica, como ocorre com o roubo de alimentos.

E há outros crimes relacionados à ordem pública, como estar bêbado em público ou a prostituição. Em muitos países essas condutas têm pena de prisão enquanto em outros seriam tratadas como questões civis, com aplicação de multas.

IDDD – Essa diferença de tratamento está relacionada à cultura de cada país?

CH – Sim, é um problema cultural encarar a prisão como necessária e única resposta para qualquer tipo de crime, desconsiderando o quão pequeno esse crime pode ter sido. É uma falta de imaginação e é uma falta de compreensão do baixo resultado que prisão pode ter para as pessoas. Esse é um dos extremos do espectro. O outro é o uso político das penas em casos mais sérios.

Vemos que, por causa da retórica política, que diz que temos de ser duros com o crime, as sentenças se tornaram cada vez mais longas. Isso fez surgir sentenças mínimas obrigatórias para toda uma gama de crimes para os quais não caberia prisão.

Vemos o poder de juízo debilitado. Vemos a pressão política e da mídia sobre a justiça ser mais dura. O resultado são sentenças cada vez mais longas. As pessoas estão passando mais tempo na prisão, estão envelhecendo na prisão. Em alguns países, cumprem períodos indefinidos de detenção, sem saber quando serão liberadas. Isso é um problema na Inglaterra, em particular. Temos uma terrível forma de sentença conhecida como sentença indeterminada para proteção pública e, embora tenha sido abolida, cerca de três mil pessoas ainda estão sob esse tipo de regime, sem qualquer ideia de quando serão libertadas.

IDDD – Quais são as principais consequências sociais do uso massivo de prisões?

CH – As consequências sociais são tantas que é difícil saber por onde começar. Para as pessoas presas, uma das consequências é a reincidência, porque uma vez cumprida uma sentença, há uma probabilidade muito grande de que você venha a cumprir outra. Isso acontece porque, quando um indivíduo passa pela prisão, suas chances de conseguir uma vida normal são significativamente reduzidas. Há um estigma. Com um registro dizendo  que você esteve na prisão, será muito mais difícil conseguir um emprego. E será muito mais difícil ter uma casa ou crédito para conseguir dinheiro emprestado. Suas relações familiares serão abaladas e, em última instância você perderá seus relacionamentos, seu contato com amigos e com a família. Essas pessoas também terão problemas de saúde, doenças mentais, e estarão mais propensas ao suicídio, à autoagressão ou a se tornarem dependentes de drogas.

Em alguns países, os filhos são levados para abrigos. E eles mesmos alimentarão uma futura geração de presos – na Inglaterra, por exemplo, as crianças sob custódia do Estado são mais propensas a irem para a prisão quando adultas e cerca de  40% das mulheres presas na Inglaterra estiveram em abrigos em algum momento de suas vidas.

Essas são algumas das consequências para as pessoas presas, mas há consequências para as famílias e para a sociedade, de maneira mais ampla, como o impacto econômico de tirar alguém do sistema produtivo e torná-lo dependente do Estado no futuro.

IDDD – Reduzir as taxas de encarceramento no Brasil parece uma meta inatingível num futuro próximo. Você concorda? Com base nas experiências que pesquisou, como poderíamos superar essa tendência?

CH – Pelo que eu tenho ouvido de especialistas brasileiros, a probabilidade é que a população carcerária do país continue crescendo exponencialmente se não houver uma mudança completa de políticas públicas. Sabemos que as taxas de encarceramento só em São Paulo subiram muito acima da taxa nacional. É muito sério e os sinais não são bons. Nada parece ter acontecido recentemente para mudar este cenário.

Apesar de haver boas medidas como a audiência de custódia e a introdução de medidas alternativas, elas não são suficientes. O que precisamos é uma mudança de cultura para garantir que elas sejam aplicadas corretamente. Além disso, é necessário que haja uma mudança de abordagem dos promotores em termos de como e quem eles acusam .

O Brasil não quer chegar a situação dos Estados Unidos, com uma taxa de 660 presos a cada 100 mil habitantes – apesar de não estar muito longe disso [a atual taxa de encarceramento no Brasil, segundo dados do Ministério da Justiça de junho de 2016, é de 316]

Podemos aprender com os Estados Unidos? O principal motivo pelo qual os Estados Unidos reduziram os níveis de encarceramento é porque estavam custando muito caro. E está custando caro no Brasil? Depende de como você conta esse custo. O  Brasil não gasta muito com o superencarceramento. O custo em termos fiscais não é sentido.

A abordagem em alguns estados não é “nós estamos encarcerando o dobro das pessoas que estávamos encarcerando há dois anos, então precisamos gastar o dobro em nossas prisões”. Isto não está acontecendo e não vai acontecer, então precisamos contar os custos de maneira diferente.

Um modo de olhar é entender por quê os danos do encarceramento se concentram em comunidades marginalizadas e atingem principalmente a população negra. Não é algo que afeta a todos igualmente, é um custo que vai ser sentido em termos sociais e irá criar mais desigualdade e insatisfação, além de um sentimento mais profundo de desconfiança e ilegitimidade sobre o sistema de Justiça – e esses custos serão muito altos.

IDDD – O uso de medidas mais punitivas para lidar com questões de segurança pública é um tema quente no debate eleitoral no Brasil. Qual poderia ser o impacto do uso político do encarceramento?

CH – Em países onde a lei é mais retrógrada, há mais crimes, sentenças mais duras, sentenças obrigatórias e o aumento do encarceramento é inevitável. Outra consequência é que se cria na sociedade o medo do crime e a ideia de que, se o Estado não intervier para proteger os cidadãos, eles automaticamente serão vítimas de crimes fatais.

As pessoas aderem a essa ideologia e aceitam a retórica de penas cada vez mais duras e sentenças mais longas. E isso faz com que elas se sintam impotentes para tomar o problema em suas próprias mãos. Elas param de se comunicar e de procurar maneiras de resolver os problemas sociais. Por isso esse discurso infantiliza a comunidade e polariza as pessoas, além de criar preconceitos raciais.

A Hungria, que também é objeto da pesquisa, é um dos países que em que é comum, entre os partidos políticos, usar a retórica contra o crime como arma para ganhar eleições. Seu grande alvo é a população cigana, que é apenas 5% da população do país, mas forma 40% da população prisional. Isso fortalece no povo húngaro a ideia de que todo crime é cometido pelo povo cigano, de que eles possuem uma predisposição para o crime. Esta retórica baseada no ódio, que faz uso de estereótipos raciais, tem consequências terríveis e é uma tendência em toda a Europa.

IDDD – Você diz que o encarceramento não é apenas uma questão de direitos humanos ou de justiça, mas também é uma questão de desenvolvimento. Por que?

CH – Está bastante claro que, em um país como a Índia, não vale a pena argumentar que a prisão é um desperdício porque eles não gastam muito dinheiro com o sistema prisional. O argumento que funciona é o seguinte: quando 70% da sua população prisional é provisória, aquelas pessoas presas sem julgamento não podem trabalhar, não podem apoiar suas famílias, e isso significa que o desenvolvimento econômico do país em que vivem é afetado. É uma questão de desenvolvimento. A prisão impede o desenvolvimento. O dinheiro que agora é gasto em suporte social poderia ser melhor gasto de outras formas.

IDDD – Nesta perspectiva, como podemos engajar a sociedade neste debate, particularmente em um contexto violento como o do Brasil?

CH – Eu acredito que mostrando alternativas e o que eles podem não ter visto como consequências do encarceramento. Precisamos explicar que, não importa o quanto eles sejam duros no processo de justiça criminal, essa pessoa estará de volta à comunidade. Não podemos incapacitá-la para sempre. Você pode torná-la uma pessoa mais perigosa ou menos perigosa, e isso depende do método de intervenção que você escolher usar. Acho que mostrar às pessoas a realidade do que a prisão causa, o dano colateral do uso excessivo da prisão, é uma maneira poderosa de mudar a conversa. E também fazer com que as pessoas que passaram por esse processo falem sobre suas próprias experiências – a face humana é vital e é ignorada. Eu acho que no Brasil há uma cultura muito polarizada na forma de qualificar pessoas. Existe o “malandro”, o “bandido” e “o vagabundo” de um lado, e do outro lado está todo o resto. Todos sabemos que isso é uma simplificação da realidade.

Podemos examinar nossa consciência e dizer que nunca fizemos nada de errado? Ninguém nunca cometeu algum um crime de nenhum tipo? Ninguém conhece uma pessoa que tenha cometido um crime? Eu duvido. Acho que temos que parar com essa atitude polarizada. Temos que ser mais solidários e perceber que todos vivemos em comunidade com todas as pessoas que correm o risco de se envolver com o sistema de justiça criminal. Não é necessário muito para alguém, mesmo na Inglaterra, perder o emprego, perder a casa e acabar se envolvendo de alguma forma com a justiça criminal.

Talvez o mais importante seja tentar fazer com que governo e sociedade se façam as seguintes perguntas: por que usamos o encarceramento? Qual é o propósito que achamos que a prisão tem? Que resultados podemos esperar que a prisão alcance de forma geral e em casos individuais? Precisamos ser realistas sobre os limites do que podemos esperar da prisão.

Por fim, precisamos questionar a politização das sentenças, o uso excessivo de penas para pequenos crimes. Precisamos perguntar: quem está na prisão? É correto que as mulheres grávidas estejam na prisão? É correto que mães de crianças pequenas estejam na prisão? É correto que pessoas acometidas por doenças mentais estejam na prisão? É correto que pessoas muito idosas estejam na prisão?

Eu acredito que, para cada preso, para cada grupo de presos que entra na prisão hoje, há um número equivalente de pessoas que poderiam sair legitimamente.

Na Holanda, um dos dez países da nossa pesquisa, um dos modos pelos quais o governo conseguiu frear a construção e reforma por aumento de vagas foi criar uma lista de espera para as pessoas que tinham sido condenadas à prisão. Se a prisão a que elas foram encaminhadas tiver excesso de capacidade, elas são colocadas em espera. Existem muitas maneiras de manter a população prisional abaixo do limite.

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